quarta-feira, setembro 27, 2006

Conversa pra tucano dormir

De Geraldo Alckmin, nos programas eleitorais e nas entrevistas à tevê: “o que o Brasil precisa é de um Plano Nacional de Desenvolvimento”. Vou te dizer uma coisa Alckmin: não, o que o Brasil precisa não é disso. Vejamos por quê.

O Brasil já teve alguns planos nacionais de desenvolvimento nos moldes do que o tucano propõe. O de JK foi o primeiro deles. Trouxe para o país a Volkswagen, abriu estradas e ferrovias, ergueu portos e construiu Brasília, obra-prima daquele governo. Ele fez um serviço necessário ao Brasil, mas também deixou o país com inflação, dívida externa e foi o ponto de partida para o êxodo rural das décadas seguintes, ou seja, iniciou a favelização das metrópoles.

João Goulart veio alguns anos depois e tentou fazer as reformas de base, mas os militares não deixaram. Implantaram o PAEG de Roberto Campos, arrumaram a economia sob uma visão ultraortodoxa e preparam o Brasil para crescimento econômico. E, para legitimar o ilegítimo governo dos militares, criaram um novo plano nacional de desenvolvimento, que apostava, desta vez, em obras faraônicas. Resumindo: Itaipu e Transamazônica.

Foi o tempo em que o Brasil pensou que fazia o bolo crescer pra dividi-lo depois. Não fez nem uma coisa nem outra. E o resultado da brincadeira foi o que aconteceu na década de oitenta. Precisa explicar por que ela é conhecida como a década perdida? Creio que não.

Pois bem. Agora Alckmin, sustentado pelo PFL (a rapa do que sobrou da antiga ditadura), descobriu que o Brasil precisa de mais um desses planos. Ele completou dizendo que vai transformar o país num imenso canteiro de obras. Ou seja, vai repetir o que JK e a ditadura já fizeram. Nos dois casos, creio que não se resolveu o problema do Brasil.

O que o Brasil precisa não é fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. Mas, sim, dar oportunidades a quem ficou de fora do bolo durante 500 anos de, desta vez, pensar em como fazer um outro bolo. Não sou contra obras, é óbvio que elas são necessárias. Mas não podemos encará-las como a base de um programa de governo. E não podemos, também, acreditar que o mito das obras é que vai nos salvar.

PS: Paulo Freire, meu guru espiritual e intelectual, foi citado duas vezes ontem na tevê. Apareceu em foto no programa do Cristóvam Buarque e foi citado por Nilmário Miranda no debate em que o Playboy Almofadinha fugiu. Foi uma grata surpresa, pois já havia decidido votar nos dois. Agora, mais ainda.

PS2: A conversa pra tucano dormir serve também para vossa excelência, o Playboy Almofadinha, aquele da mordaça. Em outra postagem, irei comentar sobre o mito do desenvolvimento no projeto da Estrada Real.

terça-feira, setembro 26, 2006

Como a mídia norte-americana aliena o público


Achei esta no blog Stuck in Sac, que por sua vez havia reproduzido a imagem do blog Rising Hegemon. Trata-se das capas da revista Newsweek desta semana vendidas nos Estados Unidos e no resto do mundo.

Para o mundo, a publicação mostra o fracasso da campanha militar norte-americana no Afeganistão. Para os Estados Unidos, a edição da mesma data mostra o perfil da fotógrafa Annie Leibovitz.

Precisa dizer alguma coisa?

"Xô Sarney" cai na grande imprensa


A campanha Xô Sarney chegou, hoje à grande imprensa. A Folha de S. Paulo publicou matéria e entrevista, reproduzida pelo blog de Alcinéia Cavalcante, o pivô da campanha. Recomendo a todos que passem por lá para dar uma olhada. A quem se simpatizar com a causa, recomendo ainda que deixem comentários em solidariedade. Àqueles que ainda não estão sabendo do caso, recomendo a leitura desta postagem, ou então dos blogs Biscoito e Pensar Enlouquece (links aí do lado).

Só para repercutir o caso, vou enumerar alguns pontos do que Sarney disse à Folha:

1. A campanha Xô Sarney não existe no Amapá;
2. Sarney não processa jornalistas;
3. Nunca houve diferença de 50 pontos percentuais nas intenções de voto entre Sarney e Cristina Almeida;
4. Sarney não tem 37% de rejeição no Amapá;
5. Sarney não representa os interesses do Maranhão e, sim, do Amapá.

Agora, refuto as informações.

1. Alcinéia Cavalcante mora no Amapá e não inventou a campanha, apenas divulgou que ela está acontecendo. Logo, ela acontece, sim, no Amapá;
2. Sarney pode não processar jornalistas pessoalmente, mas seus advogados são pagos para fazê-lo e o fazem;
3. No início da campanha, pesquisa do Ibope apontou essa diferença de 50 pontos percentuais;
4. Pesquisa do Ibope aponta rejeição de 37% de Sarney;
5. Apenas cinco das 23 propostas apresentadas por Sarney beneficiam o Amapá.

Nossa função enquanto público

Reservo-me neste momento o direito de repercutir a postagem que li mais cedo no Biscoito. Franklin Martins, comentarista de política da Band, revelou, em sua coluna no IG, a armação montada pelo jonal O Estado de S. Paulo. O diário simplesmente resolveu entender que pobres, pretos e nordestinos são os responsáveis pela corrupção no Brasil.

A "constatação" se deu após uma leitura no mínimo preconceituosa (racista mesmo) de uma pesquisa do Ibope, em que o jornal simplesmente ignorou as margens de erro para dar sustentação a uma tese que simplesmente não se sustenta. No final das contas, a mensagem passada nas entrelinhas é a de que quanto mais escura a cor da pele, mais conivente é o brasileiro com a corrupção. Nem precisa dizer que isso é um absurdo.

Queria aproveitar a deixa para falar de outro caso de forçação de barra. Esta semana resolvi comprar duas revistas para compará-las: a Caros Amigos, independente, e a Época, da Editora Globo. Não vou discutir a cobertura das eleições, mas de outro assunto importante: a guerra no sul do Líbano.

Época fez uma matéria entitulada "O que há com o Islã"? Em oito páginas, mostrou, basicamente, como a religião se transformou em pano de fundo para extremistas, homens-bomba, fundamentalistas e guerrilheiros praticarem atos de terrorismo contra nós, o Ocidente. O ponto de partida da matéria foram as declarações do papa Bento XVI. Com várias fotos tiradas de agências de notícias, a revista mostrou Osama Bin Laden e seu fuzil AK-47, homens-bomba libaneses e fanáticos radicais muçulmanos na Índia.

O texto da matéria mostra que a preocupação da revista foi fundamentar a visão de que o ocidente perdeu a paciência com o Islã. De posse disso, a revista se preocupou em encher as páginas de aspas para credenciar a tese.

Por outro lado, a Caros Amigos resolveu seguir por outro lado e fez o que os meios de comunicação deveriam ter feito há muito tempo. Resolveu ouvir a voz dos oprimidos. Em outras palavras, concedeu direito de defesa aos muçulmanos. Desta forma, mostrou que existe um outro lado nessa história, e que merece ser ouvido.

Ao contrário da Época, que aparentemente fez toda a matéria do Rio de Janeiro, ouvindo especialistas por telefone e copiando material de agências de notícia, Caros Amigos mandou um repórter ao sul do Líbano para ouvir o que os libaneses têm a dizer. Pela primeira vez, pude ler vários argumentos que sustentam uma outra tese, a de que a violência nada tem a ver com a religião e, sim, com o petróleo.

Vocês podem pensar: "mas eu já ouvi isso outras vezes". Eu também já. Mas não com tamanha precisão e argumentação que a Caros Amigos brilhantemente revela em sua edição especial.

Resumo da ópera: a grande imprensa não se preocupa em mostrar o outro lado da história, mas somente aquele que interessa. Nossa função, como público, é correr atrás desse outro lado.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Nem no Google

Do blog Please Show:

Digite "político honesto", assim mesmo entre aspas, no Google, clique em Estou com sorte e veja o resultado.

domingo, setembro 24, 2006

Se eu acordasse dono da Globo

Todo meio de comunicação tem um dono. Já reparou, por exemplo, como os canais de televisão têm seus nomes completamente ligados aos nomes de seus donos? É assim: falou em SBT, pensou em Sílvio Santos. Assim também é com a Globo e o Roberto Irineu Marinho (o filho daquele), com a Record e o Edir Macedo. Deu pra perceber o quanto a mídia e seus donos são quase que uma coisa só?

Pois bem, os canais tem donos, mas a gente nunca vê o dono de um canal falando abertamente o porquê de ele ter um canal. Por acaso você já viu o Sílvio Santos interromper o topa-tudo-por-dinheiro pra falar que o interesse dele com o SBT é vender carnês do baú da felicidade? Ou então o Edir Macedo falar que tem um canal pra trazer mais gente pro rebanho? Ou ainda o Roberto Marinho falando que usa a Globo pra barganhar interesses pessoais com o poder? Ou, talvez, o Roberto Civita (dono da Veja) comentando que gostaria de fazer com os petistas o que Hitler fez com os judeus?

Claro que ninguém nunca viu nada disso. E é até fácil de entender. Pensa bem. Se amanhã eu acordar e descobrir que sou o dono da Globo, vou querer sair por aí comendo tudo quanto é mulher. Mas nem por isso vou sair andando de pinto duro pela Afonso Pena gritando: “ei, dona, tô a fim de te comer!”. Além de deselegante, poderia dar cadeia. E pensa bem o dono da Globo na cadeia? Isso sim daria boas manchetes nos jornais.

Vamos deixar de lado o que eu não ia fazer pra falar do que eu ia fazer. Uma coisa eu tenho certeza: se eu fosse dono da Globo, meus microfones nunca dariam voz a quem pensa diferente de mim. Vê lá se eu ia dar espaço pra alguém xingar a mim, a algum amigo meu ou à minha ideologia. Claro que não! Eu sou o dono do canal e faço com ele o que eu quiser!

Agora pense um pouco a respeito. Se você fosse o dono da Globo, da Veja, do SBT, ou de qualquer outro grande canal, faria a mesma coisa? Muito provavelmente a resposta é sim. Neste caso, você tem tudo o que os atuais donos dos meios de comunicação também têm: ego.

Imagine agora que, no Brasil, apenas 10 grupos dominam a comunicação. São os cinco principais grupos de televisão, mais a editora Abril (Veja) e jornais do eixo Rio-São Paulo. Todos têm dono e cada um é feito à imagem e semelhança de seu proprietário. Existe alguma chance de liberdade de expressão nisso?

O dossiê e a tentativa de segundo turno

Desde que começou a rolar esta história de dossiê, algumas cabeças fizeram o mesmo - rolaram. E a imprensa caiu de pau, sob a máscara do mito da utilidade pública dos meios de comunicação. Na verdade, ao noticiar os fatos da maneira como tem feito, a grande mídia tem feito um carnaval na tentativa de provocar segundo turno.

Isso fica parecendo conversa de petista, mas vou logo avisando que meu voto é do Cristóvam Buarque. Entretanto, como jornalista, não dá pra engolir essa história da maneira como ela vem sendo contada. Fosse verdadeiro o mito da utilidade pública da mídia, estaria sendo investigado também o conteúdo do dossiê. Mas não, o que interessa é apenas a prisão dos petistas.

Daí que a gente chega na banca este domingo e dá de cara com as manchetes dos jornais. Cada uma tenta alardear mais que a outra a possibilidade do segundo turno. Em outra postagem, irei explicar melhor o que a mídia faz para tentar manipular a informação.

A princípio, fica apenas um exemplo. O portal Uai, pertencente ao Estado de Minas, um dos jornais mais reacionários do País e fiel seguidor da ideologia da mordaça proposta pelo eventual ocupante do Palácio da Liberdade, estampa em sua página nesta noite de domingo o seguite link: Escândalo faz crescer chance de 2º turno, diz pesquisa.

Quem clicar vai reparar que a matéria linkada nada tem a ver com o título. O texto que surge na tela fala sobre a acareação entre os acusados da compra do dossiê.

O portal em questão se confundiu. Seria normal, pois na correria do dia-a-dia, os jornalistas erram muito. Eu já errei várias vezes. Mas a impressão que fica é a de que, na ânsia de provocar o segundo turno, a investigação sobre o dossiê e a derrota de Lula virou, aos olhos da mídia, uma coisa só. Pior para a democracia.

McDonnald's e o panfleto do palhaço

Daqui a pouco, às 22h30, a Band transmite o documentário Super Size Me - A dieta do palhaço, do diretor Morgan Spurlok. Quem não sabe do que se trata o filme pode clicar no link. Não poderia deixar esta transmissão passar sem antes lançar um comentário no ar.

Aparentemente uma vez por mês, o McDonnald's troca o panfleto que vem sobre suas bandejas. O papel traz de tudo e no mês de setembro o tema é Como salvar o mundo fazendo coisas simples!. Dentre as várias recomendações que a rede de comidas rápidas propões, uma é a seguinte:Peço desculpas pela precariedade da exibição, mas é que escaneei pela minha webcam. O que interessa é a mensagem que diz, não jogue óleo de fritura usado na pia. Pois bem. O panfleto não disse exatamente o que fazer com o óleo usado e, pelo visto, os funcionários da rede ficaram na dúvida.

Tanto que, conforme noticiou uma edição da semana passada do Jornal da Alterosa (não me lembro exatamente o dia, quem souber pode me avisar), um funcionário do McDonnald's do bairro Santo Agostinho, em Belo Horizonte, despejou um balde de óleo em um bueiro da avenida Raja Gabáglia. Como resultado, um motoqueiro perdeu o controle de sua moto, despencou no asfalto e sofreu uns bons ferimentos. A tevê mostrou fotos do acidente tiradas por um funcionário da Assembléia Legislativa. Não as tenho aqui, mas seria de bom grado se algum leitor deste blog que as tiver colaborasse.

Para completar a falha de comunicação da rede de comidas rápidas, este blog se presta ao serviço de informar: quando for jogar fora óleo de fritura usado, não jogue na pia. Reserve-os em garrafas de refrigerante (as garrafas pet) vazias e coloque junto com o lixo orgânico de sua casa. Isso evita que o óleo caia na rede de esgoto e contamine os rios.

Em tempo: salve sua saúde fazendo coisas simples. Não jogue gordura no estômago!

sexta-feira, setembro 22, 2006

Falta pouco para Sarney cair



Matéria da Folha Online do último dia 19 mostra que a distância entre José Sarney (PMDB) e Cristina Almeida (PSB) já caiu para 7 pontos percentuais. Este número já foi de 50 no início da eleição. Falta pouco para a campanha Xô Sarney atingir seu objetivo final. A campanha não pode parar!

quinta-feira, setembro 21, 2006

Afinal de contas, existe dossiê?

A grande imprensa se rendeu nos últimos dias à investigação acerca da venda do tal dossiê que envolve José Serra com a máfia das sanguessugas. Mas até agora nenhum veículo se propôs a relatar o que tem nesse tal dossiê. Eu estou curioso. Parece mesmo que estão querendo melar a eleição.

O abismo entre Paulo Freire e José Sarney

Em artigo publicado no livro A pedagogia da libertação em Paulo Freire, o comunicador Venício Lima convoca comunicólogos e pesquisadores a repensar a comunicação seguindo os conceitos de Paulo Freire. Vamos a uma breve explicação para tentar entender o porquê disso.

Paulo Freire, para aqueles não conhecem, é o criador da chamada Pedagogia do Oprimido. Ele defende, entre milhares de outras idéias maravilhosamente bem-escritas, que a educação só tem sentido quando ela transforma o aluno. Isso significa que, num processo de educação, ao estudante não pode ser simplesmente despejado conhecimento pelo professor. É necessário um diálogo, só a educação dialógica pode fazer o aluno aprender a aprender e, assim, evoluir intelectualmente.

Partindo desse conceito, explicitado aqui de forma bem simples e despretensiosa, Venício Lima nos forçou a repensar a mídia. Ele propõe que pensemos uma comunicação diferente daquela exercida pela grande imprensa, onde um grupo dominante detém os meios de criação e divulgação e os receptores apenas absorvem a informação pronta. Para produzir cultura e transformar a sociedade, a comunicação social deve trazer para o campo da produção seus atuais consumidores. Ou seja, é necessário dar voz à população, permitir que ela também tenha acesso à produção de conhecimento e, assim, produzir cultura.

Mas o que isso tem a ver com a atual arbitrariedade do TRE do Amapá em favorecer sistematicamente Sarney na briga contra a blogueira Alcinéia Cavalcante? (se você não está sabendo do caso, leia esta postagem). Tem a ver que, com o advento da internet e sobretudo dos blogs, o controle de produção das informações tem se deslocado timidamente dos meios centrais de comunicação de massa para a fatia da população que tem acesso à internet.

Em outras palavras, coronéis políticos como Sarney e tantos outros tinham, antes, o controle total dos meios de comunicação nos estados em que atuavam. Nestas eleições, entretanto, tal controle não é mais tão absoluto. Resultado: o discurso único, até então responsável pela perpetuação dos coronéis no poder, desta vez foi desafiado. Por isso, a questão envolvendo o blog de Alcinéia e de Sarney são, na prática, um sintoma evidente de que a democratização da comunicação atua contra o reacionarismo e o pensamento de quem quer deixar as coisas como estão.

Ou, para reler as palavras de Paulo Freire, uma prova de que a comunicação do diálogo é um ponto de partida fundamental para termos uma sociedade com justiça e transformação social. Pense bem o que seria possível se tantos outros meios de comunicação e não só a internet alcançassem tamanho potencial de livre circulação de informações. Quem compreendeu a mensagem deve ter percebido um tom de desafio no ar. Estão todos convocados a enfrentá-lo.

Carta às faculdades de jornalismo

Outro dia fui a uma faculdade de jornalismo do interior de Minas em busca de emprego. Deixei meu currículo e conversei com uma diretora, que me contou sobre o fato de eles trabalharem para o mercado. “Daqui nossos alunos saem para o mercado, nós damos a eles a prática para que saiam prontos para entrar no mercado”, ela me disse. Na mesma semana, circulava por Belo Horizonte panfletos de uma outra faculdade de comunicação, que se gabava de oferecer aos alunos o espaço totalmente voltado para a prática. Essas observações me deixaram com uma séria dúvida a respeito do futuro dos estudantes que se filiam a essas instituições e até mesmo dos cursos de comunicação social. Vou explicar por quê.

As duas faculdades, assim como várias outras que observei, se apóiam na lógica mercadológica sob a qual se enxergam grande parte dos vestibulandos, seus principais clientes. Na idade de prestar vestibular, muitas vezes os alunos estão preocupados em entrar para a faculdade mais para conseguir uma colocação no mercado de trabalho do que qualquer outra coisa. De posse disso, as faculdades se prestam a oferecer um mero curso profissionalizante, com base em uma visão simplória, deformada e até mesmo irresponsável. Elas preferem atender aos anseios de seus clientes por um diploma do que trabalhar para que as salas de aula sejam um amplo espaço de reflexão acerca dos conceitos que regem a comunicação.

Para deixar mais claro esta idéia, vamos a um exemplo. Quando da minha graduação em jornalismo, tive acesso obviamente às disciplinas práticas, como fotografia, planejamento gráfico, radiojornalismo, etc. Apesar de hoje não saber como aproveitar todo o potencial de uma máquina fotográfica profissional, fui treinado durante um semestre inteiro a trabalhar com o diafragma, obturador, objetiva e demais componentes da câmera. Também aprendi a lidar com a revelação das fotos na sala escura, mas imagino que isso hoje já tenha sido substituído por aulas frente ao Photoshop. Bom, o resultado disso tudo é que o conhecimento adquirido nesta disciplina considerada prática não provocou nenhum efeito, pois ao sair da sala de aula jamais toquei em uma câmera fotográfica. Pela falta de prática, perdi o que aprendi. Numa leitura freiriana do que aconteceu, o conhecimento não me modificou e, portanto, simplesmente não houve educação.

Agora pense bem o que acontece com um estudante que passa praticamente todo o semestre da disciplina de planejamento gráfico em frente a um computador aprendendo a lidar com os comandos do Adobe Indesign. Ou então, com aquele que fica seis meses aprendendo a trabalhar com o Adobe Premiere sob o título de Edição em TV e Vídeo. Este não foi o meu caso, mas é o pode estar acontecendo por aí.

O que ocorrem, em ambos os casos, é emburrecimento. Pois os alunos sairão das salas de aula e não saberão pensar para atender a algum desafio do mercado. Sairão apenas com a capacidade de obedecer ao chefe, pois são apenas técnicos e não pensadores.

Não bastasse isso, há ainda um outro problema grave. As faculdades profissionalizanes de jornalismo se sentem satisfeitas em entregar um bacharel tecnicamente pronto para assumir o mercado. Só que estes alunos, ao se formarem, encontram um mercado historicamente restrito e com poucas oportunidades. Muitos dos bacharéis vão acabar abandonando a profissão. Resultado: o conhecimento da faculdade não os transformou como se pretendia. Em outras palavras, eles emburreceram. E, por saírem cada um descontentes com o mercado que encontram, em grupo vão acabar provocando o descrédito do diploma de jornalismo.

Creio que o perigo que envolve essa formação meramente profissionalizante fica óbvio. Mas qual poderia ser, então, o caminho para as faculdades? Elas precisam se rever. A sala de aula é um espaço para debate, para crescimento intelectual, e não para emburrecimento tecnicista. Os alunos que ali freqüentam devem discutir conceitos, e não aprender a trabalhar com um ou outro software ou equipamento.

Por exemplo, nas aulas de fotografia, eles devem aprender teorias gerais da fotografia e depois discutirem sobre o uso dela para o jornalismo, os critérios de edição, etc. Assim como nas aulas de planejamento, os alunos não precisam aprender a desenhar, mas sim entender como opções de diagramação são apropriadas por diferentes propostas de jornalismo, como pensar uma diagramação e assim por diante. A parte meramente técnica poderia até ser oferecida em oficinas experimentais, por exemplo. Mas jamais tomar a maior fatia das horas-aula das disciplinas.

Ampliado para todas as disciplinas, esse realinhamento irá permitir ao aluno que, ao sair da faculdade, repense o mercado como está. De posse dos conceitos que adquiriu, ele poderá observar a realidade daquele mercado e, assim, criar alternativas para que possa se encaixar. Como agora sabem pensar, irão se propôr a objetivos muito mais nobres do que apenas deixarem currículos nos balcões de recepção da grande mídia. Saberão criar novas demandas e, numa perspectiva mais ampla, trabalharão pela democratização da comunicação, um desafio que os bacharéis de hoje têm a obrigação de enfrentar.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Se a moda pega...





A campanha Xô Sarney já é um sucesso na blogosfera. Quais novas campanhas você gostaria de ver? Dê sua sugestão.

Sarney vs Blogs

Mary, autora deste belo blog, sugeriu em um tópico da comunidade de blogueiros que falta ao UaiPod um "algo mais". Passei algumas horas pesquisando blogs dos quais sou fã, como este e este outro. Resolvi, por fim, aderir à campanha que ganha mais espaço a cada dia na blogosfera: a campanha "Xô, Sarney". Não sei se é deste tipo de "algo mais", sem ironias, que nossa visitante sentiu falta, mas acredito que seja um "algo mais" do interesse de todos.

Vou me permitir estender um pouco este post para dissertar sobre a vida recente deste nobre ex-presidente da República e explicar o porquê da campanha. Sarney foi candidato a vice-presidente nas eleições presidenciais indiretas de 1985, numa composição que agregava setores dissidentes do governo militar e políticos oriundos do Movimento Democrático Brasileiro, atual PMDB. Com a morte de Tancredo Neves, Sarney assumiu o governo. Dentre os feitos de sua gestão, destaca-se o Plano Cruzado, pacote de medidas econômicas heterodoxas que, nos primeiros meses de implantação, praticamente zerou a inflação absurda da época.

Esticado por vários meses por motivos eleitorais, o congelamento de preços imposto pelo governo federal caiu em descrédito e a inflação voltou ainda mais galopante. Apesar de ter rendido belos dividendos eleitorais ao PMDB de Sarney, o plano cruzado perdeu a credibilidade e o governo, apoio da população e de parte do Congresso. Passou a atuar no jogo político o então ministro das comunicações Antônio Carlos Magalhães, distribuindo concessões de rádio e tevê a políticos que submetessem seus votos em plenário aos interesses do executivo. Parênteses: alguma semelhança com a compra de votos da reeleição de FHC ou o mensalão?

Pois bem, dentre as maracutaias promovidas por Sarney para se manter no cenário político, uma em especial desafiou os limites da geografia. Após anos de coronelismo no Maranhão, seu berço eleitoral, Sarney resolve de um dia para o outro candidatar-se a senador pelo Amapá, estado pelo qual cumpre o seu segundo mandato no Senado. Com isso, ele garante sua cadeira e ainda abriu espaço para correligionários maranhenses.

Mas o que tem a ver Sarney e os blogs? Basicamente, o seguinte: o senador maranhense-amapaense resolveu processar o blog da jornalista Alcilene Cavalcante, por estampar esta foto:


De acordo com os blogs citados, a jornalista deve R$ 45 mil em condenações judiciais e ainda viu seu antigo blog alcilene.zip.net ser retirado do ar por decião da Justiça. Estranhamente, após deixar de existir, tal blog ainda foi condenado a dar direito de resposta a Sarney. O blog da irmã de Alcilene, Alcinéia Cavalcante, explica melhor esta história. Vale a pena conferir.

Teste seu engajamento político

Marque nas alternativas abaixo o que mais se aproxima de sua opinião sobre cada um dos itens citados.


1. Movimento dos Sem-Terra

a) Movimento de oportunistas e baderneiros liderados por pessoas que só querem invadir fazendas e provocar o caos no Brasil, que deve ser extinto

b) Movimento que luta por uma sociedade mais justa, mas que, por causa da truculência de alguns líderes, teve seu conceito desvirtuado e deve ser revisto

c) Movimento de trabalhadores legitimamente organizados com o fim de promover a reforma agrária e democratizar o acesso à terra no Brasil, que deve ser apoiado



2. Mensalão

a) Máfia que envolveu lideranças do PT no governo federal e na Esplanada dos Ministérios, com o fim exclusivo de enriquecimento ilícito e desvio de verbas públicas

b) Esquema que envolveu nomes de partidos da base aliada e tinha como objetivo quitar verbas de campanha por meio de caixa-dois

c) Prática iniciada nos primórdios da política brasileira, ampliada no governo FHC e mantida na atual gestão devido à presença de um Congresso viciado pelo pagamento de propinas



3. Máfia das Sanguessugas

a) Esquema de roubo do dinheiro do cidadão brasileiro por meio de emendas à constituição, iniciado na gestão FHC e mantido por políticos do chamado “baixo clero” do Congresso

b) Esquema de desvio de verbas propiciado por falha na legislação brasileira, que permitiu a um empresário seduzir parlamentares em troca de caixa de campanha

c) Perseguição política a parlamentares que apresentaram emendas ao orçamento para compra de ambulâncias e foram alvo de críticas e investigações enganosas


4. Rede Globo de Televisão

a) Importante veículo de comunicação do Brasil, responsável por levar informação e entretenimento a milhares de cidadãos de todas as regiões

b) Veículo de comunicação que presta serviços a diversas comunidades, mas que deveria repensar sua programação a fim de dar voz aos anseios da população

c) Principal meio de manipulação da população brasileira, usado para enganar brasileiros desinformados e ocultar informações de real relevância para o povo brasileiro


5. Hugo Chavez

a) Prestigiado líder venezuelano, que prega contra o imperialismo dos Estados Unidos e procura dar melhores condições de vida ao seu povo, por meio de conquistas como a erradicação do analfabetismo

b) Presidente venezuelano, que se beneficia da alta do petróleo para garantir visibilidade internacional e manter o poder dentro de seu País

c) Baderneiro internacional, que pretende angariar apoio em países subdesenvolvidos com o risco de provocar desgaste irreparável na diplomacia internacional


6. Bolsa-família

a) Programa assistencialista, que tem o objetivo de angariar apoio nas camadas mais pobres da população por meio de distribuição de esmolas ao povo

b) Programa de distribuição de renda que, devido a falhas na sua concepção, precisa ser revisto para que haja mais fiscalização e menos desvio de recursos

c) Programa de distribuição de renda modelo no mundo, que deve ser ampliado a fim de erradicar a miséria em solo brasileiro.


Se você marcou alternativas em todas as questões propostas, junte todas elas e mais alguma coisa que vier à sua cabeça e você terá em mãos tudo o que precisa para ser um político como todos que estão por aí. Ou então, esqueça o teste, vá fazer política ensinando alguém a ler, instruindo aqueles que estão à sua volta ou lutando de alguma forma para melhorar as condições de vida de quem está mais próximo de você.

Moral da história: fazer política com discurso é muito fácil. Sem ele, é ainda mais.

O Spam e a credibilidade da rede - Parte 2

Para reforçar a idéia da postagem anterior, republico aqui matéria que escrevi para o jornal Estado de Minas em julho de 2004. E sugiro ainda a visita ao site QuatroCantos.com, especialista em desmascarar boatos virtuais.

Rede de intrigas

Dezenas de boatos circulam pelos e-mails diariamente e alguns são tidos como verdade

PAULO DE MORAIS

Livro de geografia norte-americano ensina que a Amazônia é uma área internacional comandada pela ONU. Ninhada de cães da raça golden retriever será sacrificada se não for adotada em uma semana. Coca-cola com limão provoca câncer. Adolescente foi contaminada após sentar sobre seringa com sangue contendo vírus HIV.

Não há quem cheque sua conta de e-mail diariamente que nunca tenha recebido uma mensagem de alerta com alguma dessas notícias. Na imensidão do espaço virtual, os hoaxes, como são conhecidos os boatos no jargão da internet, viraram moda de vez. Os especialistas advertem: quando receber mensagem de alerta, a ordem é sempre desconfiar.

Os hoaxes sempre deixam pistas de que se trata de uma enganação. A começar pelo tom alarmante, criado sobretudo com excesso de letras maiúsculas e exclamações do tipo “Cuidado!”, “Absurdo!”ou “Impressionante!” “Esse tipo de enganação tem como cúmplices os ingênuos, que pensam estar prestando serviço a amigos por e-mail”, opina Giordane Rodrigues, criador e editor do site Infoguerra, que trata de segurança na rede e tem uma seção exclusiva sobre hoaxes. A página desvenda dezenas de boatos sobre vírus, um dos tipos mais comuns encontrados na rede.

CASOS MAIS COMUNS
O site Quatrocantos.com, mantido desde 1999 pelo professor Gevilácio Aguiar, da Universidade Federal de Pernambuco, tem um arquivo de 177 hoaxes desvendados. A maioria deles possui temas semelhantes. Um dos casos mais comuns é de produtos que fazem mal à saúde, como refrigerantes que provocam inflamação no fígado e xampus ou desodorantes cancerígenos. “Para dar credibilidade, eles apelam para falsas autoridades. O caso do desodorante que provoca câncer de mama, por exemplo, vem assinado por uma pesquisadora do Alabama que nunca existiu”, atesta o criador do site.

Gevilácio recebe diariamente dezenas de e-mails de leitores com novos casos. O surgimento de boatos e o reaparecimento de mensagens antigas é tamanho a ponto de não poupar trabalho ao editor do site — na última sexta-feira, 936 e-mails estavam sem resposta. Mas o que motiva um professor a se dedicar tanto tempo a desvendar boatos? “Nem eu sei explicar. Um dia comecei e agora não paro mais”, explica.


Assinantes do Uai ou do Estado de Minas podem ler a matéria completa aqui.

O Spam e a credibilidade da rede

Quando, há alguns dias, resolvi escrever esta postagem sobre a desconfiança que nós, brasileiros, empunhamos contra diversas instituições que regem nossa sociedade, citei a internet. Nem de longe minha intenção é caracterizar a rede como algo ruim. Muito pelo contrário, reconheço nela uma das principais – talvez a principal – alternativa para a democratização dos meios de comunicação. Como conceito, a internet é ótima: uma rede onde qualquer usuário pode ter seu espaço, independente de pertencer a um grupo dominante, ao contrário do que acontece com os meios de comunicação de massa, como televisão, rádio, jornais impressos, etc.

A rede é relativamente nova em relação aos demais meios de comunicação e é difícil prever se ela vai fazer jus a essa capacidade que possui. As alternativas que ela tem proporcionado para fazer dos receptores de informação também emissores parecem interessantes. Basta pensar como e-mail, wikipédia, blogs, orkut, entre outros, nos permite postar livremente informações a um grupo de pessoas. Nos meios “tradicionais” de comunicação isso jamais seria possível.

Esse conceito de meio de comunicação livre e democrático, entretanto, também tem seus pesares. Vou dar um exemplo claro. Há duas semanas, fui a uma certa instituição entregar currículo, em busca de emprego. Fui recebido por uma certa diretora que me prometeu entrar em contato por correio eletrônico no caso de uma eventual oportunidade de trabalho. Até aí, a rede cumpre com primazia seu papel de baratear a informação e estreitar laços entre os usuários.

No entanto, alguns dias depois recebo uma correspondência encaminhada por um ex-colega de trabalho. Originalmente, tinha sido enviada pela mesma pessoa que me recebeu na instituição onde pretendo trabalhar. A mensagem trazia o apelo de uma mãe teoricamente em busca da filha desaparecida. A carta implorava aos leitores por compaixão. “Por favor, não ignore, passe para a frente, ajude esses pais desesperados”, dizia o anexo image001.jpg, este que aqui publico:

O remetente da mensagem não se deu o trabalho de verificar a autenticidade do comunicado. Para aliviar meus leitores desta tarefa, resolvi fazer o que todos deveriam, mas raramente fazem: checar as informações. A primeira coisa que fiz foi procurar pela expressão “Maria Cecília desaparecida” no Google. Atitude simples, mas que parece difícil para muita gente. O resultado foi que descobri o nome de quem parece ser a real signatária do apelo: uma certa “Marta Alexandra Sá Oliveira Pinho”. Pesquisando por este nome, descobri que trata-se de uma professora de escola infantil de Portugal. E, continuando a pesquisar, observei que mesmo por Portugal a mensagem já perdeu credibilidade.

No entanto, a mesma pessoa que me enviou o falso apelo também o fez para algo em torno de 40 pessoas (não tive paciência de contar). Vamos considerar que um décimo dos destinatários tenha se sensibilizado pela mensagem e resolvido mandar para outras 40 pessoas. De cara, são mais 160 atingidos. Se outros 10% resolverem repetir o encaminhamento, outros 640 internautas receberão o apelo. Creio que não é necessário continuar esta progressão geométrica para imaginar onde tudo isso vai parar.

O que me preocupa mais não é o simples fato de minha caixa de entrada ser invadida por este tipo de apelo. Dificilmente abro este tipo de mensagem, só o fiz pela credibilidade que tenho em relação ao remetente. Entretanto, ainda ronda a minha cabeça a dúvida em relação ao motivo pelo qual um cidadão com curso superior colabora tão cegamente com a propagação dos spams. Só consigo acreditar que o motivo é a confiança que existe de um modo geral em relação a todos os meios de comunicação. Só que, no caso da internet, o que ela tem de melhor – a possibilidade de democratização – é parente muito próxima do que ela tem de pior – a possibilidade de proliferação de mensagens irresponsáveis, como Spams.

Fica minha decepção ao perceber que, assim como o remetente da mensagem em questão, outros milhares contribuem e continuarão contribuindo para que a internet caia em descrédito. Resta aos usuários trabalhar para manter a credibilidade da rede e perceber que os vírus não estão em arquivos executáveis ou em programas de compartilhamento de música e vídeo, mas sim nos próprios boatos que, infelizmente, continuarão a ser alimentados.

quarta-feira, setembro 13, 2006

O menino que mijava coca-cola - Capítulo Quatro

Padre Homero era o tipo do religioso esquisito. Pregava a todos princípios de boa convivência, mas era o mais mal-humorado da paróquia. Ninguém entendia o motivo de tanta amargura. O que corria à boca pequena é que não tinha como ele se acostumar com um lugar tão longe de tudo depois de ter morado a vida toda na capital. Havia quem dissesse, entretanto, que ele era carrancudo simplesmente porque queria. Seja lá qual fosse o motivo, a verdade é que o padre Homero já estava mesmo de saco cheio daquele distrito cheio de gente enjoada. Só não tinha deixado o lugar porque tinha uma ou outra pessoa do agrado dele.

Os coroinhas Horácio e Otávio, por exemplo, eram do agrado do religioso. Os dois alimentavam um outro mistério que intrigava as fofoqueiras do distrito. Como dois meninos alegres e divertidos passavam o dia todo cumprindo ordens daquele sujeito tão desagradável? Além do mais, eles pareciam muito mais felizes em seguir o caminho da fé do que o padre. Mesmo quando a missa levava horas e o sermão se confundia com o ronco da ala de mais idade, os dois ficavam de pé durante toda a celebração, num belo gesto de adoração.

Eis que naquele fim de tarde de segunda-feira, o Padre Homero contava os segundos pra abandonar de vez o distrito. Cansado da morosidade daquele fim de mundo, já estava com a mala pronta. Só esperava tocar o sino das seis horas pra colocar o fusquinha na estrada e largar aquele bando de gente sem futuro pra trás. Nem se preocupava em deixar o distrito a poucos dias da festa da padroeira. Também pudera, naquele evento sem-graça só tinha barraquinha de suco ralo e doce amargo. E, pra piorar, as encenações não arrancavam um suspiro sequer de ninguém e davam mais sono a cada ano.

Faltava pouco para o coroinha Horácio puxar a corda do sino e decretar o adeus, quando Firmina surge pela porta. Escuto a última fofoca sem-graça da vida alheia ou saio despercebido?, pensou padre Homero, antes de ser abordado. Embora curto, o pensamento foi longo demais. Antes de tomar qualquer decisão, já não tinha mais como fugir da abobrinha. Firmina estava afoita, nervosa, querendo contar mil coisas de uma vez. Padre Homero, desta vez você não vai acreditar – toda vez o papo começava do mesmo jeito. Um tal de Jesus, filho de um tal de Josias, que mora na Cabrita, pra lá de Mais-Além, de uma hora pra outra resolveu mijar coca-cola.

Dessa vez era demais. Fofoca esquisita ele já tinha ouvido muita. Essa, porém, superou as outras. E justo na hora em que ele quase se sentia livre do tédio do distrito. Na falta do que falar, padre Homero simplesmente não disse nada. Pegou a mala e saiu andando em direção à porta da igreja. Firmina, acostumada que era com a falta de educação do pároco, tentou insistir na conversa. Padre Homero, você vai embora? Justo agora que eu pensei que ia ter barraquinha de coca-cola na festa da padroeira?

Bastou ela terminar a pergunta e o padre quietou. Olhou pra Firmina e arregalou os olhos. O sino da igreja tocou.

segunda-feira, setembro 11, 2006

A desconfiança e a crise de credibilidade

Às vésperas das eleições, o Brasil vive uma crise de falta de credibilidade. Crise que vai além dos aspirantes de cargos públicos e não se vê não apenas na política, mas também na quase falência de diversas das instituições que movem a engrenagem da sociedade. Há sempre uma desconfiança no ar quando, numa conversa qualquer, o brasileiro se depara com temas que envolvem igrejas, imprensa ou internet, só para citar alguns exemplos. Quero propôr uma discussão coletiva para entendermos o que nos deixa boa parte do tempo descrentes de que a sociedade brasileira pode ser melhor. Vou partir do princípio – e este é o caminho que pretendo trilhar nesta discussão – de que os conceitos das instituições vão sendo desvirtuados ao longo do tempo e em muitos casos fica até difícil compreender estes conceitos.

Vamos a um primeiro exemplo prático para levantar a discussão: as igrejas evangélicas. Há milhares delas pelo Brasil e nem todas, infelizmente, atuam com boas intenções. Mas qual é a concepção de uma igreja evangélica? É de um grupo de pessoas cristãs que, por não se sentir satisfeito com o ambiente da igreja que freqüentava, resolve legitimamente seguir uma nova interpretação da fé cristã, a fim de melhor pregar os ensinamentos de Jesus. Isso primeiro aconteceu na reforma protestante européia, depois a idéia ganhou adeptos e novas igrejas foram surgindo pelo mundo, derivadas da católica. No Brasil, essas igrejas atuam há séculos, algumas são derivadas de outras comunidades protestantes, e começaram a se proliferar como nunca a partir do final do século passado. Até que alguém percebeu o poder de massificação da religião e resolveu se beneficiar monetariamente dela. Desde então, o conceito de igreja evangélica como negócio, totalmente desvirtuado do original, ganhou força no imaginário dos brasileiros. E, em conseqüência, a igreja evangélica perdeu em credibilidade.

Para ampliar mais o horizonte desta discussão, sugiro um outro exemplo aparentemente diferente, mas que tem características semelhantes: o sistema prisional. Qual é o conceito do sistema prisional? Ele foi originalmente criado para isolar por um tempo cidadãos que infringiram regras de convivência estabelecidas pela sociedade, a fim de serem tratados e reinseridos na comunidade. Tudo funcionaria muito bem se os presos, ao saírem da cadeia, retornassem à liberdade e jamais voltassem a praticar o delito que causou danos à vida em comum. Porém, o poder público brasileiro – o mantenedor deste sistema – se preocupou apenas com a questão do isolamento, e não com a reeducação para reinserção. O resultado foi que os presos se encarregaram da própria educação, ocupando o espaço deixado vago pelo governo, e criando o que se convencionou chamar de “escola do crime”. Vários ex-detentos voltaram ao convívio em comunidade praticando crimes piores do que aqueles que os levaram ao isolamento e, assim, os ex-freqüentadores das prisões passaram a ser malvistos pela comunidade. Como resultado, todo o sistema prisional caiu em descrédito.

Acredito que os exemplos tenham sido claros, mas insisto em que uma terceira observação pode nos levar a um nível de abstração mais elevado e contribuir para deixar ainda mais claro o conceito da minha discussão. Vamos ao exemplo da bolsa de valores. Elas foram criadas por um grupo de pessoas que precisavam de dinheiro para investir em um novo empreendimento, mas não tinham de onde tirar os recursos. Elas decidiram, então, dividir em cotas os custos da nova empresa com pessoas que guardavam algum dinheiro. Essas pessoas ficavam com as ações da empresa, e a cada ano podiam recolher uma parte do lucro de acordo com a fatia do capital da empresa que possuíam. Tudo ia andando bem, até que um portador de ações percebeu que poderia vendê-la a algum interessado por um preço maior do que aquele que tinha comprado e, pela primeira vez na história, alguém especulou na bolsa de valores. O resultado disso é o que todos conhecem ou podem imaginar.

A par de todos esses exemplos, não defendo uma discussão que sirva para apontar arbitrariamente defeitos nas instituições, mas sim que sirva como ponto de partida para resgatarmos os conceitos que as regem. Sem frescuras acadêmicas, sem regras, sem censura, sem embasamento teórico, sem paixonites partidárias, sem nem ter certeza de que estamos falando verdades, como se fosse uma simples conversa de bar, convido todos para um bate-papo sobre estes e vários outros conceitos. E, como ponto de partida, inicio pedindo que você pense sobre cada uma destas instituições: faculdades particulares, sem-terra, partidos políticos, polícia, traficantes e usuários de drogas, forças armadas, criança esperança, associações de bairros, orkut, blogs. Todas essas instituições ou parte delas te deixam com um ar de desconfiança? Imagino que sim. Imagino que várias outras instituições também os incomodam. Apostaria ainda como muitos de vocês desconfiam deste próprio texto. Só não posso apostar porque desconfio de apostas. Bom, o tema da conversa está proposto. Estão todos convidados.

sexta-feira, setembro 08, 2006

O menino que mijava coca-cola - Capítulo Três

Acompanhado de Firmina e Francisca, Fortunato deixou o almoxarifado pra verificar o que se passava na sala do doutor. Tudo muito esquisito, essa história de mandar coca-cola pra fazer exame não era das coisas que a gente diz que faz sentido. Só que, ao abrir a geladeirinha, o copinho escrito Jesus não era igual aos outros. Não é possível que vocês não sabem que esse copinho só serve pra guardar material dos pacientes. E quando fala material, é porque é xixi ou cocô, completou.

Francisca olhou assustada pra Firmina. Se o material do garoto era xixi e a coca-cola era material do garoto, logo ou o garoto estava mijando coca-cola ou o doutor ficou doido e de uma hora pra outra misturou os copinhos todos. E, como até então não era do conhecimento de ninguém que o doutor tinha ficado louco, restou apenas a primeira opção. Olha, se o que vocês estão falando é verdade, então esse menino resolveu mijar coca-cola, emendou Francisca. E olha que eu bebi e estava bem geladinha, do jeito que a gente nunca vê por aqui.

Ao ouvir as palavras de Francisca, os dois fizeram cara de nojo. Só que a curiosidade foi maior e logo brigavam pelo copo. Ficou decidido dividir igualmente, ninguém queria deixar de repartir a coca-cola com uma etiqueta Jesus. Bastou a primeira degustação e Fortunato deu logo o veredito. Eu já ouvi falar de muita coisa esquisita nessa vida, menino de quatro braços, mula sem-cabeça, potrinho voador. Mas menino que mija coca-cola é a primeira vez.

E o que é que nós vamos fazer a respeito?, indagou Firmina. Aquela coisa maluca de um menino que mija coca-cola atiçou a curiosidade dos três. Alguém sabe onde ele mora?, insistia Firmina. Pelo que ouvi o pai conversando, a casa dele fica na Cabrita, depois do arraial de Mais-Além, dá um tempão andando daqui, respondeu Francisca.

O tal lugar era longe, mas tão longe que nem se imaginava vida por lá. E levou o pensamento dos três tão longe que quando deram por si, o horário de almoço do doutor tinha acabado. Por sorte, ele estava atrasado. Firmina jogou o copinho no lixo e avisou: vou ter que contar pra alguém que entende dessas coisas pra ver o que fazer. Ainda hoje aviso o padre Homero e depois eu falo com vocês.

quarta-feira, setembro 06, 2006

O menino que mijava coca-cola - Capítulo Dois

Era hora de fechar o posto quando Firmina, a recepcionista, chamou Francisca pra fazer a resenha do dia. Que que aconteceu pro doutor implicar com ocê?, perguntou. Veio me xingar porque a coca-cola que sumiu é material do garoto. Se eu soubesse disso, tinha deixado o garoto beber, uai, respondeu Francisca.

Firmina, porém, era, um pouco mais sabida do que Francisca e tinha conhecimento de que quando falava material é porque ia pra cidade fazer exame. Também era de pleno conhecimento que material não podia sumir não, cada um tem o seu e se trocar pode dar problema. Só que se a Francisca falava a verdade, então o material do garoto era coca-cola, e já não era do conhecimento de Firmina que coca-cola também servia pra fazer exame. Ficou com isso na cabeça, mas achou melhor esperar pra ver no que ia dar.

E teve de esperar toda a semana, pois só a segunda-feira seguinte foi dia de visita do doutor de novo. Josias voltou a acordar mais cedo e trouxe o filho pra saber o resultado do exame. Decididamente, não tinha como ser frescura, pois há duas semanas que o xixi do menino estava esquisito. E enfiaram água e chá de folha no menino, e pararam de dar café, e nada dele sarar.

Já era hora mesmo de saber o que esse menino tinha, mas no posto de saúde parecia que o tempo andava mais devagar. Tinha muita gente esperando. Era uma dona em pé, com menino chorando no colo, outro sentado num pedaço de toco, uma menina que sabe-se lá como não tinha nojo do catarro escorrendo na cara, todo mundo do lado de fora do posto. Firmina aparecia na porta e chamava um por um. Já tinha chamado a menina que fez cocô na calça três vezes, o velhinho que tinha a perna enfaixada e a mãe que trouxe um menino com a cara cheia de pinta.

Jesus ficava invocado porque a moça nunca falava o nome dele, nem que fosse em vão. Firmina também aguardava pelo chamado. Ficara atrás da porta ouvindo todas as consultas, a fim de saber quem era o tal menino que trouxe coca-cola pra fazer exame. E foi depois de uma consulta chatíssima, uma conversa que nem teve graça, de um rapaz que tinha só uma dor na nuca porque dormiu atravessado, que o doutor pediu para Firmina chamar Jesus.

De trás da porta, tudo o que Firmina ouvia era uma conversa esquisita, o doutor falava sobre um tal de extravio. E disse que ia ter que recolher o material novamente. A informação a deixou de orelha em pé, esperando a hora do almoço pra conferir o material do garoto.

Pois eis que dá o meio-dia. Firmina chama Francisa até a sala do doutor, abrem a geladeirinha e lá atestam: o copo de coca-cola voltava à geladeira, e na embalagem estava escrito Jesus. Verificaram o conteúdo e não tinham dúvida, era mesmo coca-cola. Que coisa esquisita, acho bom falar com o Fortunato, do almoxarifado, ele é mais sabido que a gente e vai saber melhor dessa história de levar coca-cola pra fazer exame.

segunda-feira, setembro 04, 2006

O menino que mijava coca-cola - Capítulo Um

Jesus era o mais novo de uma família de seis irmãos: Josué, José, João, Júlio, Julião e, claro, Jesus, que tinha sete anos. Moravam na roça, tão longe da escola que o ônibus, de um dia pro outro, esqueceu que lá existe. Era o primeiro dia de aula de Jesus, e ele passou quase chorando, vendo os irmãos jogarem bola no quintal. Estava com dor no cotovelo esquerdo e preferiu não jogar.

Naqueles dias em que a falta do que fazer imperava, os irmãos reservavam boas horas do dia pra jogar bola. Fosse época de seca ou quando tarefa na roça simplesmente não tinha de haver, tinha gol a gol até não ter mais sol. Jesus quase nunca jogava, reclamava de doença ou de dor num lugar ou noutro pra ficar de fora. Se jogava, só fazia perder. Acostumou a deixar de lado essa coisa de competir e inventava todo dia uma desculpa melhor que a da vez anterior pra não ter que enfrentar os irmãos.

Por fim, de tanto usar do mesmo expediente, Jesus ficou desacreditado. Ninguém mais dispensava a devida atenção, nem em caso de o moleque despencar de quase morto. Feliz de dona Joana, a mãe, que não teve carência disso acontecer pra acreditar no menino. Foi num certo dia de janeiro, Jesus a tirou do fogão. Tinha algo estranho no xixi. Toma isso filho, que é remédio, e tornou a dar ao menino meio copo de chá da primeira folha que viesse à mão.

Até então, pra tudo que era problema, a mistura tratava de fazer sarar. Só que desta feita, já ia a segunda dúzia de copos de chá desde a lua nova e o menino não passava pra desculpa seguinte. Tem coisa errada, pensou a mãe. Foi com Jesus ao banheiro e viu que o xixi estava mesmo esquisito. Tava escuro, tinha cheiro de açúcar e intrigou a mãe, que resolveu chamar o pai, que resolveu chamar um por um dos irmãos, e nenhum deles se atreveu a explicar.

O jeito foi esperar o dia seguinte, dia de doutor no distrito, pra examinar. Foi dia de Josias, o pai, acordar antes ainda dos galos. Jesus nem viu a estrada até o distrito, o cobertor estava quentinho e a marcha só fazia dar mais sono. Na sala toda branca, ele tomou cinco copos d'água pra devolver meio. Deixou num frasco um líquido escuro, gaseificado e de aroma adocicado, que deixaram uma cara de dúvida no doutor por alguns minutos. Vou guardar aqui na geladeira pra depois fazer exame na cidade, disse ao pai e a Jesus. Na semana que vem você volta aqui, campeão!, era a primeira vez que alguém chamava Jesus disso.

Porém, antes de o doutor voltar pra cidade, um extravio inesperado atravessa a trajetória desta história. A faxineira, como de rotina, pegava o horário de almoço pra limpar a sala do doutor. Era muita gente que passava por ali, e o que mais tinha era sujeira de paciente. Aquele calorão e a saída do doutor era o que precisava toda vez pra Francisca pegar água mineral, bebida, fruta, e o que estivesse sobrando ali na geladeira dele.

Nesse dia, por acaso, tinha um copinho. Francisca ficou curiosa. Sabia ler pouco, o suficiente pra ver pela primeira vez que o doutor era homem de religião. Deve ser por isso que ele não se importava quando sumiam as coisas da geladeira. E não ia ligar pra um copo de coca-cola. Ela raramente tomava coca-cola, quase nunca tinha dessas coisas por lá. De tão satisfeita, não segurou a notícia, saiu a contar pelos corredores que tinha tomado o copo de coca-cola do patrão.

Ela só não sabia que desta vez o doutor não ia deixar passar. Material de paciente não podia sumir. Onde foi parar o material do garoto?, esbravejou ele. Material? Desculpa doutor, eu não sabia que era material do garoto... pra mim era material do senhor mesmo. É que a gente custa a ver coca-cola aqui, e quando vi não agüentei... soubesse que era material do garoto, tinha deixado ele beber.